quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

Cirandas da Ilha Grande II: O Arara

“Arara” é uma antiga gíria do sul do estado do Rio de Janeiro usada para designar a figura dos andarilhos, como nos conta Cáscia Frade no seu Guia do Folclore Fluminense (1985). E é esta figura do andarilho que está representada na dança do Arara, uma das miudezas da ciranda sul fluminense. Dança de pares soltos que se organizam em círculo ficando um folião caracterizado de arara ao centro. Este traz um chapéu que, em momento oportuno, coloca na cabeça de algum dançarino da roda e troca de lugar com ele. O arara, além do chapéu, por vezes carrega também, como parte de sua caracterização de andarilho, uma bengala e um saco de aniagem nas mãos.  

Benedito Crespim do Rosário, cantador e pandeirista conhecido como Côco, nos trouxe uma versão do Arara que animava bailes de ciranda na Ilha Grande em tempos passados (entrevista feita em 14 de outubro de 2015). Versão que está aqui transcrita em partitura e disponibilizada on-line em https://www.youtube.com/watch?v=TzcIU0jQksg.  A cantiga tem duas variantes melódicas com versos que podem ser recriados ou improvisados pelo cantador e um refrão que se mantém constante e sempre se repete entre as estrofes. Esta versão é bem distinta de outras versões do Arara ouvidas no sul fluminense, como, por exemplo, a publicada no livro Cantos do Folclore Fluminense, de Cáscia Frade (1986), ou a executada no CD Ciranda de Paraty, dos Coroas Cirandeiras, o que reforça a originalidade do cancioneiro de cirandas da Ilha Grande. 
   





quinta-feira, 17 de dezembro de 2015

Um poema popular

ABC é uma forma poética tradicional, em que estrofes, usualmente de quatro versos, são criadas a partir da seqüência das letras do alfabeto. É uma forma muito antiga, já tendo sido encontrada em textos europeus do IV. Existem registros de ABCs em várias partes do Brasil, como pode ser apreciado, por exemplo, nos “Cantos e Contos  do Brasil", de Sílvio Romero. No sertão brasileiro, em outros tempos, tinha função de registrar biografias de pessoas destacáveis ou documentar acontecimentos relevantes. 

Diamante Cocotóis, descendente de gregos, era uma senhora detentora de incrível memória. Ela nasceu na Ilha Grande, possivelmente na década de 1930, e passou quase toda sua vida na Vila do Abraão. Foi para cidade de Angra dos Reis apenas na velhice, quando adoeceu e teve que ficar aos cuidados alheios, em uma casa de repouso, até seu falecimento no ano de 2015.

Trago aqui um singelo ABC de amor e saudade, infelizmente incompleto e de autor desconhecido, que transcrevi de uma gravação em fita cassete que fiz com Diamante no início dos anos 2000, quando ela me me deixou registrar várias de suas lembranças de meninice.  

Amada do coração
Adeus que eu já vou embora
Clamando de saudades tua
Suspirando toda hora

Bem sabes prenda querida
Que eu te amo de verdade
Se soubesses que eu morri
Digas que foi a saudade

Contigo eu vivo em sentido
Toda noite todo dia
Quando eu não posso te ver
Não posso ter alegria

De ti, quando me apartei
Foi com prantos e suspiros
Meus olhos vivem chorando
Quando me vêem nesse arretiro

Eu vivo só imaginando
Como poderei passar
Sem te ver a tanto tempo
Nesse tristonho lugar

Fechou-se meu coração
Meus olhos vivem chorando
Lágrimas em mim não cabem
Sozinha, aqui estou penando

Grandes desgostos eu tenho
Grandes penas me acompanham
Grandes tormentos eu padeço
Nessas terríveis montanhas

Hei de mostrar meu sentido
Do que sinto em minha vida
Em lembranças envolventes [?]
De pessoas tão queridas

Ainda eu não separei
De mim aquela agonia
Que tive quando apartei
De ti [?] em tão triste dia

Já passei tantos tormentos
Que mal digo a minha sorte
Quando de ti me apartei
Já senti a dor da morte

Cada vez que eu me recordo
Daquela tarde ditosa
Que teve por despedida
Fico ainda pesarosa

Lágrimas hei de chorar
Enquanto tiverdes esperança
Quando eu não te posso ver
Chorai minha vingança

Meu peito padece dor
Minha alma sofre agonia
Meus olhos vivem chorando
Terão consolo algum dia

Não posso mais relatar
O meu grande sofrimento
Minha vida acabarei
Contigo no pensamento

O mundo falso, enganoso
Sempre me traz perseguida
Mas eu só sinto não ver
A minha prenda querida

Por dentro toda firmeza
Embora estejas ausente
Lembrando sempre de ti
Como se fosse presente

Quem me dera adivinhar
Se tu te lembras de mim
Como de ti me alembro
Lembranças que não tem fim

Retratas a formosura
Oh, que coisa tão galante
Eu só te posso comparar
Com pedra [...] e diamante

Senhor, eu vou vos [?] pedir
Por amizade um favor
Por estares de mim ausente
Não me negues teu amor

Tenho te dito meu bem
Todos meus pensamentos
Para de novo te ver
Eu vivo contando os momentos