Este trecho da Oração de Santa Cruz retrata expressivamente a
súplica por proteção e a fé das pessoas que buscam às rezadeiras. Quando
registrei os depoimentos da Diamante, em 2001, ela era a única moradora da Vila
do Abraão que fazia orações e rezas de proteção e cura. Ela, que recebia muitas
pessoas em sua casa sem pedir nenhuma remuneração, me explicou a função de
algumas das orações mais procuradas. A Oração de Santa Cruz é “pra defender
as pessoas”; deve-se fazer a oração e depois rezar o Pai Nosso e a Ave
Maria oferecendo à Santa Cruz de Jesus Cristo. A Oração de Nossa Senhora da
Guia serve “pra defender as moças que saem à toa nas ruas arranjando homem”.
A Oração de Santa Catarina “é para arranjar namorado”, mas quem sabe
esta oração não deve ensinar a outro, “se a pessoa que sabe essa oração,
oferecer pra outra pessoa, não arranja [namorado]”. A Oração de Nossa
Senhora das Cabeças é “pra dar mais juízo às pessoas... ter mais memória,
mais entendimento”.
Em relação à cura de doenças, Diamante disse ser o cobreiro e a
erisipela os principais alvos dos que a procuravam, pois era dito no local não
haver outro remédio para estes males senão a reza. Cobreiro é nome usado no
Brasil inteiro para referir-se a certas erupções cutâneas atribuídas ao contato
do corpo humano com cobras, seja o contato direto ou através de roupas que
foram tocadas por estes animais. A medicina científica diz ser o cobreiro
infecção causada por vírus chamado Herpes zoster. Diamante
me contou que para curar o cobreiro reza para São Pedro e São Paulo e usa galho
de Cambará para bater no local infectado. A reza é a seguinte:
Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste, Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Cobreiro, Senhor
– Volta prá trás e vai tratar
– Com que senhor?
– Com ramo do monte e água da fonte.
Depois de dizer estes versos, começa a bater no local infectado
com o galho de Cambará e, pela descrição que ela deu, tem que bater bastante e
com força. À medida que bate continua assim a reza:
Que da pele vai à carne,
Que da carne vai ao osso,
Que do osso vai ao tutano,
Do tutano vai ao mar
Para mais nunca tornar.
A erisipela é outra afecção cutânea, conhecida por distintos
nomes, como esipra ou mal do monte, causada por bactérias que aproveitam
ferimentos na pele para se instalarem, criando lesões. Diamante usa palha de
aço e azeite doce para a cura da erisipela e faz uma reza semelhante à usada
para a cura do cobreiro:
Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Esipra, erisipela, Senhor.
– Volta prá trás e vai tratar.
– Com que senhor?
– Com palha de aço e óleo de oliveira.
Ela disse que molha a palha de aço no azeite, vai passando na
ferida e vai rezando, aparentemente da mesma maneira descrita acima: “que da
pela vai à carne, que da carne vai ao osso...”.
O desavisado pode pensar que estes rituais feitos pela Diamante
são de tradição local ou recente, mas na verdade a origem das orações de cura
que ela usa é muito antiga e difundida por todo o Brasil. Frei Chico (Francisco
van der Poel), que é um profundo conhecedor da religiosidade popular no Brasil,
cita a seguinte esconjuração alemã do século X: “Saia verme com nove
vermezinhos, do tutano para o osso, do osso para a carne, da carne para a pele,
da pele para esta flecha. Amém, Senhor.” Estes dizeres parecem ser mais
relacionados à tradicional figura dos curadores de rasto, que são pessoas com
poderes de feiticeiro que curam bicheiras – lesões na pele
causadas por infestação de larvas de mosca – fazendo as larvas
saírem do corpo infectado usando somente rezas, sem nenhum outro tipo de intervenção.
A semelhança desta antiga esconjuração com parte da reza usada pela Diamante é
evidente, como também é evidente, por exemplo, a semelhança desta com a oração
contra o cobreiro que Sílvio Romero registra, no seu livro Cantos populares do
Brasil, com primeira edição publicado ainda no final do século XIX:
- Pedro, que tendes?
Senhor, cobreiro.
- Pedro, curai.
Senhor, com que?
Água das fontes,
Ervas dos montes.
Examinando a literatura, percebe-se que existem outros inúmeros
registros publicados de rezas de cura para males da pele semelhantes às usadas
pela Diamante, recolhidas em diferentes partes do Brasil. Um ponto interessante
nas palavras da Diamante é que há uma inversão em relação a outras orações
registradas. Como ressalta Frei Chico, em geral, estas orações de cura trazem
uma expulsão da doença direcionada de dentro para fora do corpo, do tutano, ou
seja, do cerne do osso, para a pele e depois para o exterior. A magia da
Diamante é diferente, ao invés de simplesmente expurgar o mal de dentro para
fora e lançá-lo ao longe em uma flecha, primeiro penetra no corpo do doente, da
pele para o tutano, para então expurgá-lo para fora, para o mar, talvez para o
infinito mar da Ilha Grande. Outro ponto interessante é que, acompanhando
as rezas existem intervenções terapêuticas mecânicas, de espancamento ou
lavagem do local infectado, e ação de agentes químicos, vindo da planta usada
no espancamento ou do azeite. Além disto, nota-se que as palavras proferidas
durante os tratamentos de cura das três moléstias da pele citadas – erisipela,
cobreiro e bicheira – se fundem de certa maneira, mas por outro lado, as
intervenções terapêuticas são distintas.
A
antiguidade e ampla distribuição destas tradições populares guardadas na
memória da Diamante nos mostram a força e a importância que elas têm, assim
como nos ressaltam a necessidade de compreender, respeitar e preservar a
cultura popular caiçara da Ilha Grande.