segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Viola de bambu: um raro instrumento musical presente na Ilha Grande

Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), dezembro de 2015

Na edição de agosto de 2015 de O ECO, publiquei um artigo intitulado “Viola e rabeca de taquara no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro”, onde mencionava com dúvidas a possibilidade da existência de violas de bambu (bambu é sinônimo de taquara) na Ilha Grande. A viola de bambu é um instrumento raro e muito pouco noticiado na literatura. Aparentemente sua origem é indígena; Helza Camêu faz um dos poucos relatos sobre este instrumento no seu livro “Introdução ao estudo da música indígena brasileira”, publicado em 1977.

Em 14 de outubro do ano corrente, tive a oportunidade de conversar com dois antigos moradores nativos da Ilha Grande: Benedito Crespim do Rosário, conhecido pelo apelido de Côco, e Arlete Maria Oliveira de Castro (o trecho da entrevista referente a esta matéria está disponível on-line: https://www.youtube.com/watch?v=bbhQEIfJSPE). Eles me falaram pormenorizadamente da existência de viola de bambu na Ilha Grande. Contaram como se fosse um instrumento dos tempos passados, que caiu em desuso há anos. De fato, busquei informações sobre estas violas com vários moradores mais novos e não obtive nenhuma resposta. A peculiaridade de sua construção, sua raridade, sua origem indígena fazem deste instrumento objeto de grande interesse, mais um dos tesouros culturais da Ilha Grande




O Côco falou que para fazer estas violas “tirava aquela pelizinha do bambu [...] e colocava um pauzinho por baixo [...]. Tinha umas cinco ou seis cordas [...] aí dava um som bom, que ela esticava bem. [...] Isto começou como brincadeira de criança, depois... Por exemplo, tinha um baile e não tinha viola, os caras inventavam de fazer isto aí. [...] Ninguém tem viola... ah, a gente faz. Aí cortava um gomo de bambu, deste bambu verde, um bambu grosso assim [fez com a mão o diâmetro de aparentemente um pouco mais de 10 cm], aí metia a faca assim, puxava aquela lapada, soltava do lado e do outro e prendia.” “E tinha gente que tocava música mesmo naquilo... naquelas violas de bambu”.

domingo, 29 de novembro de 2015

Cirandas da Ilha Grande: o Caranguejo


Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), dezembro de 2015

Os bailes de ciranda eram manifestações tradicionais comuns, em um passado recente, por todo o sul do Estado do Rio de Janeiro. Dentre as cantigas de ciranda cantadas na Ilha Grande, o Caranguejo é uma das mais amplamente conhecidas. Como é característico das canções folclóricas, que não possuem autor conhecido e cada um que as canta lhes acrescenta ou tira algo, o Caranguejo possui melodias e versos variáveis, que mudam com o tempo e com a região. Dulce Martins Lamas, que publicou um artigo intitulado Folclore musical de Paraty, na Revista Brasileira do Folclore, em 1962, transcreve uma versão do Caranguejo e fala da antiguidade desta dança, mencionando que ela talvez seja uma reminiscência daquela apreciada pelo cronista francês Freycinet, ainda no início do século XIX.
Em outubro de 2015, gravei de Arlete Maria Oliveira de Castro uma variante do Caranguejo que se cantava nos antigos bailes de ciranda na Ilha Grande, onde dona Arlete nasceu e mora até hoje (disponível on-line no link:https://www.youtube.com/watch?v=bfUO4CPdqdc):

Encontrei com o caranguejo / No meio da praia chorando / Por causa de uma conchinha / Que a maré ia levando / Olha o pé, o pé, o pé / Olha a mão que eu quero ver / Sapateia minha gente até o dia amanhecer.





A letra e a melodia desta versão do Caranguejo são bem distintas das publicadas por Dulce Lamas, assim como aquelas publicadas por Cáscia Frade, no livro Cantos do Folclore Fluminense, de 1984, e Thereza Regina de Camargo Maia, em seu livro Paraty: Religião e Folclore, de 1976. Isto sugere que esta variante seja mesmo peculiar da Ilha Grande, embora a cantiga seja tradicional e bastante difundida.

    



sábado, 28 de novembro de 2015

Viola e rabeca de taquara no litoral sul do Estado do Rio de Janeiro

Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág. 28, 06.08.2015

O uso de instrumentos de percussão e sopro na música dos índios brasileiros é bem difundido, ao contrário do que acontece com instrumentos de cordas. Uma referência importante sobre este assunto é o livro “Introdução ao estudo da música indígena brasileira”, de Helza Camêu, publicado em 1977. Neste livro, depois de discorrer e ilustrar por quase sessenta páginas os instrumentos de percussão e sopro, a autora acrescenta apenas as seguintes informações sobre instrumentos de corda, apresentadas de maneira um pouco trucadas:

“Em matéria de instrumento de corda, o índio que vive ainda em sua cultura, embora possivelmente desvirtuada, não se tem revelado muito interessado sob esse aspecto. Tem-se notícia e mesmo o Museu do índio já possui um arco musical e em seu acervo existe uma espécie de cítara de bambu, cujas fibras, desfiadas, se tornam cordas delicadas; procede dos índios Canelas (Ramkonkrameka), ex. 4.877. As cordas são colocadas sobre cavaletes também de bambu e infelizmente não há informação como faziam ou fazem soar a peça”. 
    A Biblioteca Nacional produziu a exposição chamada “Instrumentos musicais indígenas brasileiros”, baseada em desenhos de José Coelho, e publicou um catálogo em 1979, comentado pela Helza Camêu. Nesta publicação está ilustrado o instrumento referido anteriormente pela autora, mas agora ela sugere que o instrumento seja construído do tronco da palmeira buriti, ao invés de bambu, e diz ser originário de índios do município de Barra do Corda, no estado do Maranhão.

Também há algumas citações de que os índios Avá-canoeiros, do estado de Goiás, usam um instrumento que consiste de uma base de madeira escavada na qual se coloca uma corda única. No premiado filme documentário “Histórias de Avá – o povo invisível”, dirigido por Bernardo Palmeiro, há uma rápida imagem deste instrumento sendo tocado.  Mas de qualquer maneira, são extremamente raros os cordofones de origem indígena no Brasil.

No início dos anos 2000, em visita ao município de Paraty, fui informado de que naquela região havia uma tradição de construção de instrumentos de corda de origem indígena feitos de taquara (um sinônimo de bambu) semelhante àquele descrito por Helza Camêu. Eram simples gomos de taquara, do qual se desfiava algumas fibras, fibras estas que eram mantidas estendidas com algum fragmento de madeira ou mesmo de bambu, e que assim funcionavam como o cavalete de um violão; ainda me informaram que estes instrumentos podiam ser tocados com arco, então sendo chamados de rabeca, ou com os dedos, então sendo chamados de viola. 

Um luthier popular, de origem uruguaia, foi o primeiro a me falar sobre esta tradição e a me descrever estes instrumentos. Ele me mostrou algumas rabecas de bambu fabricadas por ele mesmo, dizendo ser uma forma mais sofisticada feita a partir de um modelo de rabeca de taquara de fabricação tradicional indígena, na qual ele acrescenta cravelhas de madeira e cordas de violão. 

A partir disto, passei a recorrer a memórias dos moradores antigos da região para saber mais informações sobre a tradição de construção destes instrumentos, mas consegui apenas poucos depoimentos. Na Vila do Abrahão, na Ilha Grande, a senhora Diamante Cocotós me revelou que havia por lá violas que se enquadravam na descrição que fiz, mas como não mostrei um exemplar e nem uma fotografia dos instrumentos, acredito que seja necessário confirmar esta informação. Em Paraty consegui o depoimento de certo cavaquinista, que tocava na festa de Folia do Divino. Ele me descreveu em detalhes como se construíam violas de taquara e disse ser um instrumento muito rudimentar, usado por aprendizes, e talvez também dado a crianças como um brinquedo de iniciação musical. Além disso, falou que era usado se referir jocosamente a violeiros de baixa qualidade técnica como tocadores de viola de taquara, acrescentado a seguinte quadra referente a isto, que disse ser popular:   

Aprendi tocá viola
numa viola de taquara
uma moça me chamou
violeiro de meia cara  

Anos depois ouvi esta mesma quadra com ligeiras modificações cantada por uma dupla de cantadores violeiros de Minas Gerais, mas não pude averiguar se eles atribuíam os versos a algum autor ou se os consideravam de autor desconhecido.  


Os indícios aqui apresentados, embora bastante escassos e fragmentários, sugerem que de fato existe uma tradição de fabricação instrumentos musicais de corda de origem indígena na região sul fluminense. Uma tradição que aparentemente nunca foi bem documentada, que é rarefeita hoje em dia, com certo grau de endemismo e que está em vias de ser extinta na região. 

Viola angrense: um instrumento musical extinto em Angra dos Reis

Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág 24, 01.05.2014

A viola tem suas raízes mais próximas na península ibérica, tendo se fixado em Portugal, ainda no século XV, como instrumento das camadas mais populares. Neste país, a viola sofreu grande diversificação estrutural. Segundo Ernesto Veiga de Oliveira, em seu livro “Instrumentos Populares Portugueses” (1966), são distintos cinco tipos de violas nas terras portuguesas continentais: amarantina, toeira, campaniça, braguesa e beiroa, além de dois tipos nas ilhas dos Açores: micaelense e terceirense. 
Violas portuguesas foram trazidas ao Brasil desde os primórdios da colonização, com relatos deste instrumento na então colônia ainda no século XVI. Sendo um instrumento popular e muito difundido em Portugal, naturalmente, ao longo do período de colonização do Brasil, houve certo fluxo de violas para nossas terras, provenientes de distintas regiões da metrópole.
Hoje a viola é um dos instrumentos musicais tradicionais mais amplamente distribuídos pelo Brasil, especialmente longe dos centros urbanos. Aliada a sua ampla distribuição, está uma grande diversidade estrutural e técnica, que, pelo menos parcialmente, é derivada da diversidade das violas portuguesas que vieram para o Brasil.
Alceu Maynard Araújo foi um grande estudioso da cultura popular brasileira e muito se aprofundou na cultura relacionada à viola no Estado de São Paulo e arredores. Seus estudos foram em grande parte compilados no livro Folclore Nacional, com primeira edição em 1964.  Este autor diz que conhecia quatro tipos de violas no Brasil: a paulista, a cuiabana, a do nordeste e a angrense. Este último tipo ocorria em áreas litorâneas do sul do Estado do Rio de Janeiro, São Paulo e Paraná. As violas angrenses são muito distintas de outros tipos de violas brasileiras por possuir um pequeno suporte junto à caixa de ressonância, chamado de ‘periquita’ ou ‘benjamim’, que sustenta uma tarraxa usada para colocar uma corda mais curta. Esta corda curta adicional, a que no Brasil muitas vezes dá-se o nome de ‘cantadeira’, existe nas violas beiroas de Portugal, sendo muito provável que as violas angrenses tenham se derivado de violas portuguesas deste tipo. 
Desafortunadamente, a viola angrense pode ser considerada como um instrumento extinto em Angra dos Reis ou mesmo no Estado do Rio de Janeiro, como previu aquele eminente folclorista que a descreveu, quando relatou o seguinte: “em novembro de 1947, quando estivemos em Angra dos Reis, constatamos que, com o falecimento do antigo fabricante das afamadas violas angrenses, não há mais quem as fabrique naquela cidade sul-fluminense”. Hoje em dia, o nome ‘viola angrense’ caiu em desuso, contudo, este tipo de viola é ainda hoje muito encontrado no litoral de São Paulo e Paraná, ligado à tradição do fandango, sendo chamada simplesmente de viola ou viola de fandango. Cabe aqui lembrar que o fandango paulista e paranaense faz parte da mesma tradição que no sul do Estado do Rio de Janeiro é conhecida como ciranda.
Assim, perdeu Angra dos Reis este instrumento musical tão peculiar que poderia ser mais um símbolo cultural do município. Mas, contudo, ainda é possível resgatar a viola angrense, assim como a tradição musical relacionada a ela, especialmente a ciranda, que também está em processo de desaparecimento na região. Isto poderia ser alcançado, por exemplo, com a criação de grupos de músicas e danças folclóricas caiçaras, dirigidos tanto a adultos como a crianças. Além de uma visão de que o imenso potencial turístico da região pode ser ainda aumentado e aperfeiçoado se forem incluídos roteiros culturais de turismo enfatizando a riquíssima cultura caiçara do sul fluminense.



Um relato de folia de reis na Ilha Grande

Publicado no jornal O Eco, Angra dos Reis (Ilha Grande), pág. 23, 06.12.2013

O ciclo das festas populares natalinas se inicia na véspera de Natal e segue até o dia 06 de Janeiro, dia de Reis. Durante este período, por todo o Brasil acontecem diferentes folguedos populares, como pastorinha, chegança, marujada, bumba-meu-boi e a folia de reis, que é realizada no último dia do ciclo. A folia de reis consiste de cortejo, pautado na viagem dos três reis magos do Oriente em busca do Cristo recém nascido, em que grupos visitam casas angariando presentes ou refeições. Em geral, os grupos de foliões param em frente das casas visitadas e cantam músicas relacionadas à viagem dos reis magos ou a episódios da vida de Jesus, comumente acompanhados por instrumentos populares, como viola e rabeca, e alguma percussão. Depois eles cantam pedindo para o dono da casa abrir a porta. Os grupos de foliões variam em número de integrantes, mas tradicionalmente contam com um mestre, que comanda a folia, um contramestre, que recolhe os donativos, e um responsável por carregar a bandeira do grupo. Muitas vezes as folias são organizadas como forma de pagamento de promessas feitas.
Diamante Cocotois, hoje com cerca de 80 anos, nasceu e passou toda sua vida na Ilha Grande. No ano de 2001 gravei um depoimento em que ela conta que presenciou a atividade de grupos de folias de reis na Ilha Grande em sua juventude. Cheguei a gravar duas músicas que eram usadas nos cortejos, mas infelizmente as melodias se perderam, pois a frágil fita cassete onde foram feitas as gravações se deteriorou com o tempo. Assim, não foi possível resgatar as melodias da forma que ela contava, mas os versos são transcritos abaixo. Primeiro o grupo cantava a vida de Cristo na porta da casa onde iriam ser oferecidos os donativos, conforme segue:


Os três Reis e as três Marias
Marcharam para Belém
Foram ver cantar o reis
Vamos nós cantar também

Honrado dono da casa
Escutai e ficai atento
Se queres saber de Cristo
E quando foi seu nascimento

Quando Jesus Cristo nasceu
Foi numa noite de Natal
Três horas da madrugada
Antes do galo cantar

Devia Jesus nascer
Em colchão de ouro fino
Entre palhinhas deitado
Nasceu Deus pobre menino

Foi a estrela mais brilhante
Que no céu apareceu
No clarão foi nos levar
Onde Jesus Cristo nasceu

A estrela mais brilhante
Levou por divina guia
Que clarão foi alumiar
Jesus, José e Maria

Disparou uma estrela
Por detrás de uma cabana
Para dá exemplo ao mundo
Nasceu Deus, neto de Ana


Depois os foliões cantavam os seguintes versos pedindo licença para entrar na casa:


Honrado dono da casa
Faz favor, mande entrar
Quem na sua porta bate
Pedindo para entrar

Estamos aqui em vossa porta
Como um fechinho de lenha
A espera da resposta
Que da sua boca venha

Honrado dono da casa
Acorde sua senhora
Para receber as outras
Que estão do lado de fora

Pelo buraco da chave
Eu vi a luz alumiar
Eu vi o dono da casa

Devagar se alevantar

A ciranda caiçara na ilha grande e a dança do Filipe

Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande) pág. 19, 01.09. 2013


No litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, são chamados de ciranda bailes populares tradicionalmente acompanhados por viola, pandeiro e muitas vezes por rabeca, onde determinadas músicas, por vezes chamadas de modas ou miudezas, são executadas em associação com danças de coreografias características. Dentre as modinhas cantadas e dançadas nestes bailes estão a cana verde, a marrafa, o caranguejo, a tonta, a barra do dia e muitas outras.

Em diferentes partes do Brasil, o nome ciranda é usado para designar manifestações populares distintas. Por exemplo, ciranda de Pernambuco é gênero musical e dança de roda atualmente bem difundida, mas muito distinta da ciranda caiçara. Por outro lado, a ciranda caiçara é estreitamente ligada com o que se chama de fandango no litoral de São Paulo e Paraná. Como falou o folclorista Silvio Romero, no final do século XIX, “chama-se xiba, na província do Rio de Janeiro, samba no norte, fandango no sul,” certos “bailes rústicos... ao som de viola e pandeiro”. Ainda que, de acordo com o contexto, os termos xiba, ciranda, fandango e ainda cateretê possam ser usados como sinônimos ou não, aqui é importante destacar a origem comum e as semelhanças existentes entre ciranda caiçara, fandango paulista e paranaense, algumas danças infantis de roda e quadrilhas de folguedos juninos existente no Estado do Rio de Janeiro.

O município de Paraty é onde se tem melhor conservada a ciranda caiçara. Este município foi fundado no limiar do século XVII e alcançou grande prosperidade ao longo dos séculos subseqüentes, sendo o caminho dos que buscavam o ouro das Minas Gerais.  Contudo, sofreu uma derrocada abrupta no final do século XIX, que se pode atribuir à construção da estrada de ferro ligando Rio de Janeiro e São Paulo por terra, que tornou desnecessário o uso do porto de Paraty, e o impacto da abolição da escravidão para a economia local. Isto gerou abandono e grande isolamento para o município, que teve como lado positivo a preservação da arquitetura e de sua rica cultura popular, incluindo a ciranda. Já no vizinho município de Angra dos Reis, a linhagem da antiga ciranda parece estar em vias de extinção. Sobre isto, é interessante lembrar o relato do folclorista Alceu Maynard de Araujo da existência de um último construtor de violas em Angra dos Reis iguais às usadas pelos fandangueiros de São Paulo e Paraná, ainda na década de 1950.

Tendo passado toda sua vida na Ilha Grande, a descendente de gregos Diamante Cocotós nos relatou sobre várias manifestações culturais populares guardadas em sua memória. Das diversas vezes que conversei sobre os bailes populares e as canções de ciranda com Diamante, a moda que mais lembrava era o Filipe, que ela achava muita graça ao cantar. Infelizmente a frágil fita cassete em que gravei seu canto, em 2001, foi perdida, de forma que não foi possível resgatar a melodia com a maneira peculiar que ela cantava. Mas os versos estão transcritos abaixo, ressaltando-se que durante a cantoria cada estrofe é sempre intercalada com o refrão.   

Ô Filipe, meu filho da calça apertada
No chapéu traz uma fita encarnada

Quá, quá, rá quá quá
Namora Filipe que não faz mal     Refrão
Namora de lá prá cá

Ô Filipe, meu filho, tu me consome
Tu sois o botão da casaca dos homens

Encontrei Filipe no alto do morro
Com a vara na mão chamando os cachorros

Encontrei Filipe no alto da serra
Lavado de sangue que vinha da guerra

Encontrei com Filipe lá na prainha
Com o remo nas costas matando sardinha

Encontrei com o Filipe descendo do banco
Tirando o sapato e calçando o tamanco

Ô Filipe meu filho da onde vieste
Eu vim da lagoa do canto de leste

Encontrei com o Filipe lá no Jordão
Com o remo nas costas e a linha na mão

Ô Filipe é bão, ô Filipe é mau
Agarraram o Filipe e meteram o pau

Um dos primeiros trabalhos de pesquisa aprofundados sobre música de ciranda caiçara foi feito em Paraty, no ano de 1960, por Dulce Martins Lamas, que publicou seus resultados na Revista Brasileira do Folclore em 1962. Neste trabalho o Filipe é citado como dança paratiense e possui versos distintos daqueles cantados por Diamante e aparentemente com alguns improvisos do cantador. O que se mantém constante nas distintas versões é apenas a parte do refrão que diz “quá quá rá rá quá, namora Filipe que não faz mal”. Da mesma forma, a versão do Filipe gravada em CD em 1997 pelo tradicional grupo Os Coroas Cirandeiros, de Paraty, possui versos distintos dos anteriormente citados, mas o mesmo trecho do refrão se repete.

Atualmente é importante a criação de grupos organizados de cirandeiros para dar continuidade a esta tradição tão interessante da cultura caiçara. O fandango do Paraná e São Paulo tem sido crescentemente valorizado, propiciando a organização de vários grupos de fandangueiros e tendo sido inclusive reconhecido como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2012. Resta existir um maior incentivo para a criação de grupos organizados de cirandeiros em Angra dos Reis e especificamente na Ilha Grande. Com todo o imenso potencial turístico desta região, seria natural a tentativa de conciliar o interesse que desperta a antiga história do município e as ricas manifestações populares caiçaras em um modelo de turismo cultural, sendo de grande potencial para este fim a alegria dos cantos e da dança dos bailes de ciranda.


Rezas, orações e curas: religiosidade e medicina popular na Ilha Grande


Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág. 22, 07.05.2013

Afastai de mim toda a arma cortante, derramai em mim todo o bem, desviai de mim todo o mal. Fazei com que eu siga o caminho da salvação, Santa Cruz de Jesus Cristo. Livrai-me dos acidentes temporais e corporais, Santa Cruz de Jesus Cristo

Este trecho da Oração de Santa Cruz retrata expressivamente a súplica por proteção e a fé das pessoas que buscam às rezadeiras. Quando registrei os depoimentos da Diamante, em 2001, ela era a única moradora da Vila do Abraão que fazia orações e rezas de proteção e cura. Ela, que recebia muitas pessoas em sua casa sem pedir nenhuma remuneração, me explicou a função de algumas das orações mais procuradas. A Oração de Santa Cruz é “pra defender as pessoas”; deve-se fazer a oração e depois rezar o Pai Nosso e a Ave Maria oferecendo à Santa Cruz de Jesus Cristo. A Oração de Nossa Senhora da Guia serve “pra defender as moças que saem à toa nas ruas arranjando homem”. A Oração de Santa Catarina “é para arranjar namorado”, mas quem sabe esta oração não deve ensinar a outro, “se a pessoa que sabe essa oração, oferecer pra outra pessoa, não arranja [namorado]”. A Oração de Nossa Senhora das Cabeças é “pra dar mais juízo às pessoas... ter mais memória, mais entendimento”. 
Em relação à cura de doenças, Diamante disse ser o cobreiro e a erisipela os principais alvos dos que a procuravam, pois era dito no local não haver outro remédio para estes males senão a reza. Cobreiro é nome usado no Brasil inteiro para referir-se a certas erupções cutâneas atribuídas ao contato do corpo humano com cobras, seja o contato direto ou através de roupas que foram tocadas por estes animais. A medicina científica diz ser o cobreiro infecção causada por vírus chamado Herpes zoster. Diamante me contou que para curar o cobreiro reza para São Pedro e São Paulo e usa galho de Cambará para bater no local infectado. A reza é a seguinte:

Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste, Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Cobreiro, Senhor
– Volta prá trás e vai tratar
– Com que senhor?
– Com ramo do monte e água da fonte.

Depois de dizer estes versos, começa a bater no local infectado com o galho de Cambará e, pela descrição que ela deu, tem que bater bastante e com força. À medida que bate continua assim a reza:

Que da pele vai à carne,
Que da carne vai ao osso,
Que do osso vai ao tutano,
Do tutano vai ao mar
Para mais nunca tornar.

A erisipela é outra afecção cutânea, conhecida por distintos nomes, como esipra ou mal do monte, causada por bactérias que aproveitam ferimentos na pele para se instalarem, criando lesões. Diamante usa palha de aço e azeite doce para a cura da erisipela e faz uma reza semelhante à usada para a cura do cobreiro:

Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Esipra, erisipela, Senhor.
– Volta prá trás e vai tratar.
– Com que senhor?
– Com palha de aço e óleo de oliveira.

Ela disse que molha a palha de aço no azeite, vai passando na ferida e vai rezando, aparentemente da mesma maneira descrita acima: “que da pela vai à carne, que da carne vai ao osso...”. 
O desavisado pode pensar que estes rituais feitos pela Diamante são de tradição local ou recente, mas na verdade a origem das orações de cura que ela usa é muito antiga e difundida por todo o Brasil. Frei Chico (Francisco van der Poel), que é um profundo conhecedor da religiosidade popular no Brasil, cita a seguinte esconjuração alemã do século X: “Saia verme com nove vermezinhos, do tutano para o osso, do osso para a carne, da carne para a pele, da pele para esta flecha. Amém, Senhor.” Estes dizeres parecem ser mais relacionados à tradicional figura dos curadores de rasto, que são pessoas com poderes de feiticeiro que curam bicheiras – lesões na pele causadas por infestação de larvas de mosca  fazendo as larvas saírem do corpo infectado usando somente rezas, sem nenhum outro tipo de intervenção. A semelhança desta antiga esconjuração com parte da reza usada pela Diamante é evidente, como também é evidente, por exemplo, a semelhança desta com a oração contra o cobreiro que Sílvio Romero registra, no seu livro Cantos populares do Brasil, com primeira edição publicado ainda no final do século XIX:

- Pedro, que tendes?
 Senhor, cobreiro.
 - Pedro, curai.
 Senhor, com que?
Água das fontes,
 Ervas dos montes.

Examinando a literatura, percebe-se que existem outros inúmeros registros publicados de rezas de cura para males da pele semelhantes às usadas pela Diamante, recolhidas em diferentes partes do Brasil. Um ponto interessante nas palavras da Diamante é que há uma inversão em relação a outras orações registradas. Como ressalta Frei Chico, em geral, estas orações de cura trazem uma expulsão da doença direcionada de dentro para fora do corpo, do tutano, ou seja, do cerne do osso, para a pele e depois para o exterior. A magia da Diamante é diferente, ao invés de simplesmente expurgar o mal de dentro para fora e lançá-lo ao longe em uma flecha, primeiro penetra no corpo do doente, da pele para o tutano, para então expurgá-lo para fora, para o mar, talvez para o infinito  mar da Ilha Grande. Outro ponto interessante é que, acompanhando as rezas existem intervenções terapêuticas mecânicas, de espancamento ou lavagem do local infectado, e ação de agentes químicos, vindo da planta usada no espancamento ou do azeite. Além disto, nota-se que as palavras proferidas durante os tratamentos de cura das três moléstias da pele citadas – erisipela, cobreiro e bicheira – se fundem de certa maneira, mas por outro lado, as intervenções terapêuticas são distintas.

A antiguidade e ampla distribuição destas tradições populares guardadas na memória da Diamante nos mostram a força e a importância que elas têm, assim como nos ressaltam a necessidade de compreender, respeitar e preservar a cultura popular caiçara da Ilha Grande.

Um antigo gênero de poesia popular presente na Ilha Grande


Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág. 22, 07.05.2013


A cultura popular é como seixos rolados no rio. Músicas, versos, danças, modos artesanais de fazer, contos e histórias que correm de boca em boca através das gerações e vão se transformando. Palavras, gestos e sons rolados no tempo, pedras preciosas que vão se lapidando pela ação dos que ouvem e repetem. Infelizmente nos dias de hoje, muitas vezes os elementos da cultura popular, ou folclore como muitos preferem, passam despercebidos e são pouco valorizados. Pode ser surpreendente para a maior parte das pessoas, incluindo os tantos turistas que freqüentam o litoral sul do Estado do Rio de Janeiro em busca das praias, mas a riqueza cultural da Ilha Grande é muito vasta, embora esteja sendo rapidamente extinta sob os olhos de todos e, aparentemente, sem grande reação. 

Em Janeiro do ano de 2001, tive a oportunidade de registrar em um pequeno gravador de fita cassete uma entrevista com certa moradora da Ilha Grande muito especial, que me revelou várias histórias, músicas e versos da cultura popular local. Seu nome incomum – Diamante – nos remete de imediato a preciosidade do seu baú de lembranças guardadas. Filha mais nova de uma família com ascendência grega de sobrenome Cocotós, nasceu na Praia do Abraãozinho, lá pela década de 1930 ou 1940, não pude apurar ao certo. Quando a entrevistei, ela morava na Vila do Abraão junto à irmã Sofia e ao meio-irmão José Americano, pescador conhecido como Ieié. Seu outro irmão, chamado Constantino, ganhou fama local como tocador de acordeon que animava festas populares.

Diamante na cozinha de sua casa, 
Vila do Abraão, início dos anos 2000
Diamante, por certos problemas de saúde, nunca saíra da Ilha Grande até sua velhice, quando foi transferida para uma casa de repouso em Angra dos Reis. Conversando com ela, tive a impressão de que, por estes problemas de saúde, não pode viver ativamente muitas das coisas de que gostaria ao longo de sua vida, tendo sido contemplativa na infância e juventude. Talvez por este fato que ela tenha guardado na memória, e revivido em palavras, tanto do que observou no dia-a-dia das ruas, nas festas religiosas, folias de reis e carnavais.

Contarei aqui algumas das histórias que registrei da Diamante, começando por transcrever um poema em forma de ABC. Esta forma poética popular é amplamente difundida no Brasil, consistindo, em linhas gerais, de um conjunto de estrofes baseadas na seqüência de letras do alfabeto. Grandes estudiosos da cultura popular brasileira, como Sílvio Romero e Luiz da Câmara Cascudo, trataram desta forma poética, que é muito antiga, já encontrada em diversos países da Europa desde o século IV, e trazida pelos portugueses às nossas terras. Normalmente os versos são heptassílabos e organizados em quadras e na maioria dos ABCs encontrados no Brasil o til é incluído como sendo uma letra. Isto acontece porque as cartilhas usadas antigamente na alfabetização costumavam incluir o til no final. Os singelos versos de amor trazidos pela Diamante em suas lembranças de outra época aportaram aqui com esperança de serem lidos e repetidos pelos leitores e, quem sabe, trarão um sopro de inspiração para novos versos e um pouco mais de reconhecimento e valorização para cultura popular caiçara.

O A quer dizer amor
Amores mesmo é que diz
Por causa de amor deixei
No mundo de ser feliz

O B quer dizer bem
Tu bens sabes compreender
Por tua causa deixei
Quem me podia valer

O C quer dizer carinho
Tu não sabes carinhar
Se tu fosses carinhoso
Talvez soubesse pagar

O D quer dizer desprezo
Desprezado eu sou por ti
Não faz mal, entrego a Deus
Tudo quanto eu padeci

O E quer dizer ingrato
Ingrato eu poço te chamá
Um ingrato como tu
Que nesse mundo não há

O F quer dizer firme
Achei o teu coração
Achei todo desprezado
E cheio de ingratidão

O G quer dizer gosto
Gosto eu podia ter
Nunca quis, sempre esperei
Pelo seu bom proceder

O H quer dizer homem
De muito mau pensamento
Eu mesmo fui a culpada
De escutar seu juramento

O I quer dizer infância
Que nela brilhava as flô
Não faz mal eu sou criança,
Tenho Deus por defensô

O J que dizer jardim
Que tendes com tantas flores
Eu queria ser jardineiro
Do jardim de seus amores

O K quer dizer quilo
Que na balança eu botei
Para pesar suas culpas
Peso nenhum encontrei

O L quer dizer lágrima
Que tenho tantas assim
Que tuas lágrimas causou
Infeliz sorte prá mim

O M que dizer muitas
Falsidade e ingratidão
Foi tudo quanto encontrei
Dentro do teu coração

O N quer dizer nunca
Eu pensei que tu fugias
Dessa paga traidora
De quem tanto te querias

O O que dizer olho
De chorar tanto me arde
Somente por encontrar
No teu peito a falsidade

O P quer dizer peso
Que tendes tantos assim
Que tuas penas causou
Infeliz sorte prá mim

O Q que dizer quero
Saber se sim ou se não
Uma das duas espero
Do teu falso coração

O R quer dizer raiva
Tendes tantas assim
A sua raiva causou
Infeliz sorte prá mim

O S quer dizer sinto
Uma dor que me consome
Por que tu fostes ingrata
E não dissestes o teu nome

O T quer dizer tenho
Uma dor que me consome
Por que tu fostes ingrata
E não dissestes o teu nome

O U quer dizer uma
Duas não há de chegar
Eu ando só esperando
Para contigo me encontrar

O V diz que vão se acabando
As letras desse ABC
Eu só quero que não acabe
Esse nosso bem querer

O X diz choro dia e noite
Sem haver consolação
Somente por estar pensando
Nessa sua ingratidão

Pissilone é letra rara
Prá numa carta empregar
No entanto eu emprego
Prá minha alma consolar

O Z é a letra final
Que termina essa missiva
Cheia de fina saudade
Com minha alma sempre viva

O til é letra pequena
Podia ficar de lado
Eu também sou pequenino
Por me ver tão judiado