sábado, 28 de novembro de 2015

Rezas, orações e curas: religiosidade e medicina popular na Ilha Grande


Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág. 22, 07.05.2013

Afastai de mim toda a arma cortante, derramai em mim todo o bem, desviai de mim todo o mal. Fazei com que eu siga o caminho da salvação, Santa Cruz de Jesus Cristo. Livrai-me dos acidentes temporais e corporais, Santa Cruz de Jesus Cristo

Este trecho da Oração de Santa Cruz retrata expressivamente a súplica por proteção e a fé das pessoas que buscam às rezadeiras. Quando registrei os depoimentos da Diamante, em 2001, ela era a única moradora da Vila do Abraão que fazia orações e rezas de proteção e cura. Ela, que recebia muitas pessoas em sua casa sem pedir nenhuma remuneração, me explicou a função de algumas das orações mais procuradas. A Oração de Santa Cruz é “pra defender as pessoas”; deve-se fazer a oração e depois rezar o Pai Nosso e a Ave Maria oferecendo à Santa Cruz de Jesus Cristo. A Oração de Nossa Senhora da Guia serve “pra defender as moças que saem à toa nas ruas arranjando homem”. A Oração de Santa Catarina “é para arranjar namorado”, mas quem sabe esta oração não deve ensinar a outro, “se a pessoa que sabe essa oração, oferecer pra outra pessoa, não arranja [namorado]”. A Oração de Nossa Senhora das Cabeças é “pra dar mais juízo às pessoas... ter mais memória, mais entendimento”. 
Em relação à cura de doenças, Diamante disse ser o cobreiro e a erisipela os principais alvos dos que a procuravam, pois era dito no local não haver outro remédio para estes males senão a reza. Cobreiro é nome usado no Brasil inteiro para referir-se a certas erupções cutâneas atribuídas ao contato do corpo humano com cobras, seja o contato direto ou através de roupas que foram tocadas por estes animais. A medicina científica diz ser o cobreiro infecção causada por vírus chamado Herpes zoster. Diamante me contou que para curar o cobreiro reza para São Pedro e São Paulo e usa galho de Cambará para bater no local infectado. A reza é a seguinte:

Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste, Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Cobreiro, Senhor
– Volta prá trás e vai tratar
– Com que senhor?
– Com ramo do monte e água da fonte.

Depois de dizer estes versos, começa a bater no local infectado com o galho de Cambará e, pela descrição que ela deu, tem que bater bastante e com força. À medida que bate continua assim a reza:

Que da pele vai à carne,
Que da carne vai ao osso,
Que do osso vai ao tutano,
Do tutano vai ao mar
Para mais nunca tornar.

A erisipela é outra afecção cutânea, conhecida por distintos nomes, como esipra ou mal do monte, causada por bactérias que aproveitam ferimentos na pele para se instalarem, criando lesões. Diamante usa palha de aço e azeite doce para a cura da erisipela e faz uma reza semelhante à usada para a cura do cobreiro:

Nosso senhor foi andando pelo caminho
Encontrou com Pedro e Paulo.
– Donde vieste Pedro e Paulo?
– Vim de Roma, Senhor.
– Que doença há por lá?
– Esipra, erisipela, Senhor.
– Volta prá trás e vai tratar.
– Com que senhor?
– Com palha de aço e óleo de oliveira.

Ela disse que molha a palha de aço no azeite, vai passando na ferida e vai rezando, aparentemente da mesma maneira descrita acima: “que da pela vai à carne, que da carne vai ao osso...”. 
O desavisado pode pensar que estes rituais feitos pela Diamante são de tradição local ou recente, mas na verdade a origem das orações de cura que ela usa é muito antiga e difundida por todo o Brasil. Frei Chico (Francisco van der Poel), que é um profundo conhecedor da religiosidade popular no Brasil, cita a seguinte esconjuração alemã do século X: “Saia verme com nove vermezinhos, do tutano para o osso, do osso para a carne, da carne para a pele, da pele para esta flecha. Amém, Senhor.” Estes dizeres parecem ser mais relacionados à tradicional figura dos curadores de rasto, que são pessoas com poderes de feiticeiro que curam bicheiras – lesões na pele causadas por infestação de larvas de mosca  fazendo as larvas saírem do corpo infectado usando somente rezas, sem nenhum outro tipo de intervenção. A semelhança desta antiga esconjuração com parte da reza usada pela Diamante é evidente, como também é evidente, por exemplo, a semelhança desta com a oração contra o cobreiro que Sílvio Romero registra, no seu livro Cantos populares do Brasil, com primeira edição publicado ainda no final do século XIX:

- Pedro, que tendes?
 Senhor, cobreiro.
 - Pedro, curai.
 Senhor, com que?
Água das fontes,
 Ervas dos montes.

Examinando a literatura, percebe-se que existem outros inúmeros registros publicados de rezas de cura para males da pele semelhantes às usadas pela Diamante, recolhidas em diferentes partes do Brasil. Um ponto interessante nas palavras da Diamante é que há uma inversão em relação a outras orações registradas. Como ressalta Frei Chico, em geral, estas orações de cura trazem uma expulsão da doença direcionada de dentro para fora do corpo, do tutano, ou seja, do cerne do osso, para a pele e depois para o exterior. A magia da Diamante é diferente, ao invés de simplesmente expurgar o mal de dentro para fora e lançá-lo ao longe em uma flecha, primeiro penetra no corpo do doente, da pele para o tutano, para então expurgá-lo para fora, para o mar, talvez para o infinito  mar da Ilha Grande. Outro ponto interessante é que, acompanhando as rezas existem intervenções terapêuticas mecânicas, de espancamento ou lavagem do local infectado, e ação de agentes químicos, vindo da planta usada no espancamento ou do azeite. Além disto, nota-se que as palavras proferidas durante os tratamentos de cura das três moléstias da pele citadas – erisipela, cobreiro e bicheira – se fundem de certa maneira, mas por outro lado, as intervenções terapêuticas são distintas.

A antiguidade e ampla distribuição destas tradições populares guardadas na memória da Diamante nos mostram a força e a importância que elas têm, assim como nos ressaltam a necessidade de compreender, respeitar e preservar a cultura popular caiçara da Ilha Grande.

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