sábado, 28 de novembro de 2015

A ciranda caiçara na ilha grande e a dança do Filipe

Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande) pág. 19, 01.09. 2013


No litoral sul do Estado do Rio de Janeiro, são chamados de ciranda bailes populares tradicionalmente acompanhados por viola, pandeiro e muitas vezes por rabeca, onde determinadas músicas, por vezes chamadas de modas ou miudezas, são executadas em associação com danças de coreografias características. Dentre as modinhas cantadas e dançadas nestes bailes estão a cana verde, a marrafa, o caranguejo, a tonta, a barra do dia e muitas outras.

Em diferentes partes do Brasil, o nome ciranda é usado para designar manifestações populares distintas. Por exemplo, ciranda de Pernambuco é gênero musical e dança de roda atualmente bem difundida, mas muito distinta da ciranda caiçara. Por outro lado, a ciranda caiçara é estreitamente ligada com o que se chama de fandango no litoral de São Paulo e Paraná. Como falou o folclorista Silvio Romero, no final do século XIX, “chama-se xiba, na província do Rio de Janeiro, samba no norte, fandango no sul,” certos “bailes rústicos... ao som de viola e pandeiro”. Ainda que, de acordo com o contexto, os termos xiba, ciranda, fandango e ainda cateretê possam ser usados como sinônimos ou não, aqui é importante destacar a origem comum e as semelhanças existentes entre ciranda caiçara, fandango paulista e paranaense, algumas danças infantis de roda e quadrilhas de folguedos juninos existente no Estado do Rio de Janeiro.

O município de Paraty é onde se tem melhor conservada a ciranda caiçara. Este município foi fundado no limiar do século XVII e alcançou grande prosperidade ao longo dos séculos subseqüentes, sendo o caminho dos que buscavam o ouro das Minas Gerais.  Contudo, sofreu uma derrocada abrupta no final do século XIX, que se pode atribuir à construção da estrada de ferro ligando Rio de Janeiro e São Paulo por terra, que tornou desnecessário o uso do porto de Paraty, e o impacto da abolição da escravidão para a economia local. Isto gerou abandono e grande isolamento para o município, que teve como lado positivo a preservação da arquitetura e de sua rica cultura popular, incluindo a ciranda. Já no vizinho município de Angra dos Reis, a linhagem da antiga ciranda parece estar em vias de extinção. Sobre isto, é interessante lembrar o relato do folclorista Alceu Maynard de Araujo da existência de um último construtor de violas em Angra dos Reis iguais às usadas pelos fandangueiros de São Paulo e Paraná, ainda na década de 1950.

Tendo passado toda sua vida na Ilha Grande, a descendente de gregos Diamante Cocotós nos relatou sobre várias manifestações culturais populares guardadas em sua memória. Das diversas vezes que conversei sobre os bailes populares e as canções de ciranda com Diamante, a moda que mais lembrava era o Filipe, que ela achava muita graça ao cantar. Infelizmente a frágil fita cassete em que gravei seu canto, em 2001, foi perdida, de forma que não foi possível resgatar a melodia com a maneira peculiar que ela cantava. Mas os versos estão transcritos abaixo, ressaltando-se que durante a cantoria cada estrofe é sempre intercalada com o refrão.   

Ô Filipe, meu filho da calça apertada
No chapéu traz uma fita encarnada

Quá, quá, rá quá quá
Namora Filipe que não faz mal     Refrão
Namora de lá prá cá

Ô Filipe, meu filho, tu me consome
Tu sois o botão da casaca dos homens

Encontrei Filipe no alto do morro
Com a vara na mão chamando os cachorros

Encontrei Filipe no alto da serra
Lavado de sangue que vinha da guerra

Encontrei com Filipe lá na prainha
Com o remo nas costas matando sardinha

Encontrei com o Filipe descendo do banco
Tirando o sapato e calçando o tamanco

Ô Filipe meu filho da onde vieste
Eu vim da lagoa do canto de leste

Encontrei com o Filipe lá no Jordão
Com o remo nas costas e a linha na mão

Ô Filipe é bão, ô Filipe é mau
Agarraram o Filipe e meteram o pau

Um dos primeiros trabalhos de pesquisa aprofundados sobre música de ciranda caiçara foi feito em Paraty, no ano de 1960, por Dulce Martins Lamas, que publicou seus resultados na Revista Brasileira do Folclore em 1962. Neste trabalho o Filipe é citado como dança paratiense e possui versos distintos daqueles cantados por Diamante e aparentemente com alguns improvisos do cantador. O que se mantém constante nas distintas versões é apenas a parte do refrão que diz “quá quá rá rá quá, namora Filipe que não faz mal”. Da mesma forma, a versão do Filipe gravada em CD em 1997 pelo tradicional grupo Os Coroas Cirandeiros, de Paraty, possui versos distintos dos anteriormente citados, mas o mesmo trecho do refrão se repete.

Atualmente é importante a criação de grupos organizados de cirandeiros para dar continuidade a esta tradição tão interessante da cultura caiçara. O fandango do Paraná e São Paulo tem sido crescentemente valorizado, propiciando a organização de vários grupos de fandangueiros e tendo sido inclusive reconhecido como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) em 2012. Resta existir um maior incentivo para a criação de grupos organizados de cirandeiros em Angra dos Reis e especificamente na Ilha Grande. Com todo o imenso potencial turístico desta região, seria natural a tentativa de conciliar o interesse que desperta a antiga história do município e as ricas manifestações populares caiçaras em um modelo de turismo cultural, sendo de grande potencial para este fim a alegria dos cantos e da dança dos bailes de ciranda.


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