sábado, 28 de novembro de 2015

Um antigo gênero de poesia popular presente na Ilha Grande


Publicado no jornal O Eco (Angra dos Reis, Ilha Grande), pág. 22, 07.05.2013


A cultura popular é como seixos rolados no rio. Músicas, versos, danças, modos artesanais de fazer, contos e histórias que correm de boca em boca através das gerações e vão se transformando. Palavras, gestos e sons rolados no tempo, pedras preciosas que vão se lapidando pela ação dos que ouvem e repetem. Infelizmente nos dias de hoje, muitas vezes os elementos da cultura popular, ou folclore como muitos preferem, passam despercebidos e são pouco valorizados. Pode ser surpreendente para a maior parte das pessoas, incluindo os tantos turistas que freqüentam o litoral sul do Estado do Rio de Janeiro em busca das praias, mas a riqueza cultural da Ilha Grande é muito vasta, embora esteja sendo rapidamente extinta sob os olhos de todos e, aparentemente, sem grande reação. 

Em Janeiro do ano de 2001, tive a oportunidade de registrar em um pequeno gravador de fita cassete uma entrevista com certa moradora da Ilha Grande muito especial, que me revelou várias histórias, músicas e versos da cultura popular local. Seu nome incomum – Diamante – nos remete de imediato a preciosidade do seu baú de lembranças guardadas. Filha mais nova de uma família com ascendência grega de sobrenome Cocotós, nasceu na Praia do Abraãozinho, lá pela década de 1930 ou 1940, não pude apurar ao certo. Quando a entrevistei, ela morava na Vila do Abraão junto à irmã Sofia e ao meio-irmão José Americano, pescador conhecido como Ieié. Seu outro irmão, chamado Constantino, ganhou fama local como tocador de acordeon que animava festas populares.

Diamante na cozinha de sua casa, 
Vila do Abraão, início dos anos 2000
Diamante, por certos problemas de saúde, nunca saíra da Ilha Grande até sua velhice, quando foi transferida para uma casa de repouso em Angra dos Reis. Conversando com ela, tive a impressão de que, por estes problemas de saúde, não pode viver ativamente muitas das coisas de que gostaria ao longo de sua vida, tendo sido contemplativa na infância e juventude. Talvez por este fato que ela tenha guardado na memória, e revivido em palavras, tanto do que observou no dia-a-dia das ruas, nas festas religiosas, folias de reis e carnavais.

Contarei aqui algumas das histórias que registrei da Diamante, começando por transcrever um poema em forma de ABC. Esta forma poética popular é amplamente difundida no Brasil, consistindo, em linhas gerais, de um conjunto de estrofes baseadas na seqüência de letras do alfabeto. Grandes estudiosos da cultura popular brasileira, como Sílvio Romero e Luiz da Câmara Cascudo, trataram desta forma poética, que é muito antiga, já encontrada em diversos países da Europa desde o século IV, e trazida pelos portugueses às nossas terras. Normalmente os versos são heptassílabos e organizados em quadras e na maioria dos ABCs encontrados no Brasil o til é incluído como sendo uma letra. Isto acontece porque as cartilhas usadas antigamente na alfabetização costumavam incluir o til no final. Os singelos versos de amor trazidos pela Diamante em suas lembranças de outra época aportaram aqui com esperança de serem lidos e repetidos pelos leitores e, quem sabe, trarão um sopro de inspiração para novos versos e um pouco mais de reconhecimento e valorização para cultura popular caiçara.

O A quer dizer amor
Amores mesmo é que diz
Por causa de amor deixei
No mundo de ser feliz

O B quer dizer bem
Tu bens sabes compreender
Por tua causa deixei
Quem me podia valer

O C quer dizer carinho
Tu não sabes carinhar
Se tu fosses carinhoso
Talvez soubesse pagar

O D quer dizer desprezo
Desprezado eu sou por ti
Não faz mal, entrego a Deus
Tudo quanto eu padeci

O E quer dizer ingrato
Ingrato eu poço te chamá
Um ingrato como tu
Que nesse mundo não há

O F quer dizer firme
Achei o teu coração
Achei todo desprezado
E cheio de ingratidão

O G quer dizer gosto
Gosto eu podia ter
Nunca quis, sempre esperei
Pelo seu bom proceder

O H quer dizer homem
De muito mau pensamento
Eu mesmo fui a culpada
De escutar seu juramento

O I quer dizer infância
Que nela brilhava as flô
Não faz mal eu sou criança,
Tenho Deus por defensô

O J que dizer jardim
Que tendes com tantas flores
Eu queria ser jardineiro
Do jardim de seus amores

O K quer dizer quilo
Que na balança eu botei
Para pesar suas culpas
Peso nenhum encontrei

O L quer dizer lágrima
Que tenho tantas assim
Que tuas lágrimas causou
Infeliz sorte prá mim

O M que dizer muitas
Falsidade e ingratidão
Foi tudo quanto encontrei
Dentro do teu coração

O N quer dizer nunca
Eu pensei que tu fugias
Dessa paga traidora
De quem tanto te querias

O O que dizer olho
De chorar tanto me arde
Somente por encontrar
No teu peito a falsidade

O P quer dizer peso
Que tendes tantos assim
Que tuas penas causou
Infeliz sorte prá mim

O Q que dizer quero
Saber se sim ou se não
Uma das duas espero
Do teu falso coração

O R quer dizer raiva
Tendes tantas assim
A sua raiva causou
Infeliz sorte prá mim

O S quer dizer sinto
Uma dor que me consome
Por que tu fostes ingrata
E não dissestes o teu nome

O T quer dizer tenho
Uma dor que me consome
Por que tu fostes ingrata
E não dissestes o teu nome

O U quer dizer uma
Duas não há de chegar
Eu ando só esperando
Para contigo me encontrar

O V diz que vão se acabando
As letras desse ABC
Eu só quero que não acabe
Esse nosso bem querer

O X diz choro dia e noite
Sem haver consolação
Somente por estar pensando
Nessa sua ingratidão

Pissilone é letra rara
Prá numa carta empregar
No entanto eu emprego
Prá minha alma consolar

O Z é a letra final
Que termina essa missiva
Cheia de fina saudade
Com minha alma sempre viva

O til é letra pequena
Podia ficar de lado
Eu também sou pequenino
Por me ver tão judiado


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